MASP

Girolamo Santacroce

Deus pai, Circa 1530

  • Autor:
    Girolamo Santacroce
  • Dados biográficos:
    Nápoles, Itália, 1502-Nápoles, Itália ,1537
  • Título:
    Deus pai
  • Data da obra:
    Circa 1530
  • Técnica:
    Mármore
  • Dimensões:
    84 x 80 x 40 cm
  • Aquisição:
    Doação Geremia Lunardelli, 1947
  • Designação:
    Escultura
  • Número de inventário:
    MASP.00019
  • Créditos da fotografia:
    João Musa

TEXTOS


Por Luciano Migliaccio
A figura de Deus Pai é um fragmento proveniente de um conjunto maior. A imagem do Eterno benevolente comparece freqüentemente nas cimalhas dos altares ou nas extremidades de complexos fúnebres. O posicionamento elevado do fragmento é confirmado pela direção do olhar da figura para baixo. Provavelmente direcionado à figura do defunto ou de uma madona com o menino. A estátua possui um ponto de vista principal frontal, com avistamentos secundários nos três quartos, mas não é estudada para ser vista de perfil. Mesmo assim é trabalhada, ainda que sumariamente, no lado posterior. Isso levaria a pensar que pelo menos a parte superior do drapeado posterior fosse visível. Pareceria difícil, portanto, que o fragmento fosse proveniente de um monumento fúnebre no qual é mais fácil encontrar um relevo ou uma figura recostada à parede. É mais provável, talvez, que a obra fizesse parte de um altar colocado no centro de um coro como ocorre, por exemplo, nas igrejas a serviço das ordens monásticas. A qualidade imperfeita do mármore e a existência de uma lacuna sobre o ombro esquerdo, preenchida talvez com ges- so, no passado, depõem em favor de um posicionamento a certa distância do olho. Sobre a cabeça notam-se algumas perfurações, talvez para uma auréola de madeira ou de metal dourado. A obra foi apresentada pela primeira vez no catálogo de uma Mostra di Antiche Sculture Italiane, ocorrida em Roma em 1945. Luigi Grassi, no prefácio citado no fichário inventarial do Masp, assim a comentava: “Influências da arte de Leonardo e Michelangelo, em uma interpretação mais pictórica do que plástica, vislumbram-se nesta escultura que pode remontar aos primeiros anos do século XVI. O escultor, que deve ser um toscano, é investigado dentro da corrente de Andrea Sansovino”. A leitura estilística indica vários pontos fundamentais para uma análise. Com efeito, o Deus Pai do Masp deriva imediatamente daquele colocado por Andrea Sansovino nas cimalhas dos monumentos Sforza e Basso Della Rovere na Santa Maria del Popolo. No entanto, comparado às hieráticas figuras romanas, este parece desenvolvido num sentido mais moderno, bastante próximo ao San Giacomo de Jacopo Sansovino da Catedral de Florença. A influência de Michelangelo mostra-se no enérgico arrebatamento da atitude, mas o escultor está longe do fazer dramático do mestre florentino. O contraposto michelangelesco em espirais aparece aí numa versão atenuada. Os panos se enrolam em hélice ao redor da figura em um movimento vertiginoso. A pose do corpo, entretanto, não parece ressentir-se disso: é como se a vida da figura se condensasse no drapeado, que é uma extraordinária invenção. Enquanto enfaixam o tronco em uma espiral, os panos levantam vôo por detrás dos ombros, como se investidos pelo vento, formando um complexo jogo de diagonais com a cabeça e o braço direito. As pregas da veste parecem quase amparar a anatomia frágil do velho que se curva sob o peso dos anos e de algum penoso segredo, apoiando-se imperiosamente na esfera do cosmo. Certamente a fisionomia barbuda parece conter elementos leonardescos, assim como o refinado tratamento luminoso da superfície. Acrescentaria talvez uma referência a Rafael, que pode explicar tanto algumas características fisionômicas quanto um tratamento tão pictórico da escultura, pensada em estreita relação com a arquitetura. Enfim, a figura conserva certo sabor quattrocentesco na anatomia e na pose que denunciam a admiração do autor pelos modelos da escultura florentina do fim do século precedente. Pense-se como exemplo no São João Evangelista do retábulo da Anunciação, de Benedetto da Maiano, na Santa Maria de Monteoliveto em Nápoles, para aí reencontrar a mesma entonação, a pose construída por cruzamentos e interrupções, a anatomia graciosa em que toda a força parece concentrada no gesto da mão que agarra a veste. A animação dos panos é herança da plástica de Antonio Rossellino. Essas características levam a pensar que o autor, ainda que embebido de cultura toscana, não provenha des- sa região, mas de um centro dependente e estreitamente ligado também a Roma, como Nápoles ou Gênova. O artista ao qual convém mais essa alternância de elementos modernos romanos e toscanos com arcaísmos maianescos seria o napolitano Girolamo Santacroce. É indicativa uma comparação com o São Jerônimo do túmulo Cisneros em Alcalá de Henares e com o Deus Pai proveniente da cimalha do túmulo de Antonio de Gennaro na igreja napolitana San Pietro Martire. A cabeça ligeiramente alongada é construída da mesma maneira, as mesmas bochechas escavadas, os mesmos olhos marcados de sombras profundas, a cabeleira que se divide em mechas sobre a testa e a barba trabalhada em sulcos que correm como chamas são muito semelhantes. O Eterno napolitano é quase idêntico à figura do Masp no gesto potente com que se aferra ao globo, levantando o braço direito para abençoar. Aparece aí também a idéia de um panejamento que forma uma diagonal por trás da cabeça. Do mesmo modo, a força do antebraço é sublinhada pela manga dobrada sobre a articulação do braço, que é um elemento característico do escultor napolitano. A sinuosidade e o tratamento vibrante do panejamento são outra constante. Essas características da escultura poderiam colocar a figura do Masp dentro da obra do artista napolitano, em um tempo perto da execução do altar de Santa Maria a Cappella Vecchia. As dimensões ligeiramente inferiores ao natural correspondem àquelas das estátuas napolitanas. Isto a situaria por volta do ano de 1530. Infelizmente não existem elementos que permitam precisar melhor a sua procedência. O fragmento paulista, ainda assim, merece ser mencionado como uma aquisição importante ao catálogo do escultor napolitano e de seu ateliê, que espera ainda por um estudo definitivo.

— Luciano Migliaccio, 1998

Fonte: Luiz Marques (org.), Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo: MASP, 1998. (reedição, 2008).



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