Por Luciano Migliaccio
O relevo ilustra o episódio bíblico da peste de Azoth (Samuel I, 6-5). Após derrotarem os israelitas em Ebenezer, os filisteus apoderam-se da Arca da Aliança e levam-na como troféu para a cidade de Azoth, ao templo
do deus Dagon. A ira divina faz desencadear uma peste que dizima os habitantes de Azoth, até que estes, aterrorizados, decidem restituir a arca. As dimensões do relevo e os sinais da presença de uma moldura ao longo
dos lados induzem a acreditar que ele fosse destinado a decorar uma sacristia ou o tabernáculo de uma capela. A história da punição dos filisteus pelo furto da arca pode ser interpretada como a pré-figuração da
sacralidade do sacerdócio e da centralidade do sacramento na teologia católica. O recurso de usar episódios do Velho Testamento nestas funções difundiu-se em todas as épocas, mas a partir do século XVII foi mais
apreciado nas decorações litúrgicas, ao mesmo tempo que se difundiam os “exemplos” bíblicos nas pregações durante as festas eucarísticas como de
Corpus Christie da Quaresma.
Na ficha inventarial do Masp, a obra
A Peste de Azoth é atribuída ao entalhador e estucador Federico Brandani (1520-1571). No entanto, tal atribuição não se sustenta com base nas características estilísticas do relevo e outras considerações históricas. O tema foi
tratado magistralmente por Nicolas Poussin num quadro datável com certeza de 1630. O entalhador do relevo do Masp retomou a composição do artista francês, interpretando-a livremente, variando os motivos das figuras e
do fundo. Mesmo que algumas idéias possam derivar da
Peste de Frígia, incisão de Marcantonio Raimondi sobre desenho de Rafael, a cultura do autor mostra um conhecimento direto do exemplar poussiniano, provavelmente com base em estampas. O grupo à esquerda,formado pelo homem que,
acompanhado de seus filhos, chora a mulher morta, deriva, sem dúvida, da obra do pintor francês, assim como as duas figuras ao fundo que transportam um cadáver. O templo de Dagon ocupa a mesma posição que no quadro
de Poussin, mas é representado com colunas jônicas ornadas com pequenos festões, tal como as arquiteturas pintadas por Pietro da Cortona. O fundo assemelha-se mais a um cenário teatral que a uma cidade. Assim também
as arquiteturas à antiga, que representam tipologias canônicas, como o templo redondo coberto por uma cúpula e a coluna espiralada, são uma versão simplificada da “cena trágica” do quadro poussiniano. O pequeno
tímpano que coroa o edifício sagrado, precedido por um amplo pórtico com colunas também jônicas e com um ático, tem um acento particularmente toscano que lembra as obras de Brunelleschi.
Além disso, o autor apresenta influência dos relevos de Algardi. Dois grupos compactos de personagens aglomeram-se à esquerda e à direita da composição; no centro, a figura isolada de um soldado de costas num gesto
de horror. Essa figura tem a função de unir os dois grupos simétricos, ampliando o sentido de profundidade do espaço em diagonal. Personagens análogos encontram-se no relevo algardiano no sarcófago da tumba de Leão
XI, em São Pedro de Roma. Também os ramos de árvore no lado esquerdo da composição têm caráter cortonesco, inspirados em relevos de Algardi. O menino que se agarra assustado à mãe, no lado direito, lembra detalhe
análogo do relevo
Martírio di Santa Emerenziana em Sant ‘Agnese in Agone de Ercole Ferrata. O estilo do escultor, na sua riqueza de episódios e de movimento, desprovido no entanto de uma verdadeira razão expressiva, que desemboca no gracioso e no ‘pitoresco’,
recorda aqueles dos relevos de Domenico Guidi, ainda que mais desenvolvidos na direção setecentista. As fisionomias das figuras e as proporções têm qualidades que lembram as pinturas de Pier Dandini. No grupo de
figuras que fecha a composição na extrema-esquerda diante das árvores cortonescas transparece o estudo dos grandes mestres, é uma citação da
Pietá, do Duomo de Florença, de Michelangelo, e no grupo à direita aparece uma homenagem em miniatura ao David Borghesede Bernini. Estas características levariam a pensar na experimentação de um escultor formado na academia toscana criada pelo grão-duque Cosimo III, em Roma, no final do século XVII. O entalhador do relevo paulista
tem, de fato, uma orientação acentuadamente cortonesca e algardiana da leva de artistas contemporâneos de Foggini devido à influência de Ciro Ferri e Ercole Ferrata, mestres daquela escola. Um escultor como Fellippo
Parodi (1630-1702), também desta geração, residente entretanto em Gênova, e que foi um hábil entalhador em madeira, poderia ter tratado o tema de maneira semelhante. Talvez um eco da pintura genovesa de Gregorio De
Ferrari e de Piola seja visível na figura do velho de mãos levantadas pelo horror, na extrema-esquerda do relevo, assim como a figura ajoelhada, que fecha a composição na mesma área, com precedentes michelangelescos
e algardianos, assemelha-se, pelo tratamento e pela função, a outras figuras que aparecem nas pinturas de Castiglione.
O autor localiza-se na esfera dos hábeis entalhadores que trabalharam entre Florença, Toscana ocidental e Gênova no último quartel do século XVII.