Por Luciano Migliaccio
A estátua Bacante Adormecida ilustra o texto atribuído ao poeta grego Anacreonte (ed. Heller, n. 46) gravado sobre a base: “Quando Baco, coroado de heras, me invade, jazo. Melhor jazer ébria do que morta”. O texto não é reconhecido como
autêntico pela crítica moderna. A imagem da Bacante possui uma antiga tradição. Geralmente, as companheiras de Dionísio foram representadas pelos artistas gregos e romanos no momento da dança e da possessão mística.
Villareale, ao contrário, representa o momento inédito do abandono que se segue à embriaguez e ao êxtase. A Bacante, depois de participar do cortejo orgiástico do deus, jaz na terra como morta, a cabeça coroada de
folhas, abandonada sobre uma pele de pantera. A mão deixa cair a taça ainda cheia de vinho que se derrama sobre a pele e sobre o solo. A mulher se rende ao sono e ergue um braço oferecendo à vista o corpo, como a
Vênus adormecida descoberta pelos sátiros na pintura de Luca Giordano, presente por um tempo na coleção real de Nápoles. A pose deriva de representações de ninfas, ou de Ariadne, encontradas nos sarcófagos
dionisíacos, mas surge, pela primeira vez, referida às bacantes na pintura dos séculos XVI e xVII: veja-se, por exemplo, a figura das bacantes no quadro
Midas Prestando Culto a Baco, de Poussin, na Alte Pinakothek de Munique, e sobretudo no Bacanal de Tiziano.
O perspicaz paralelo entre sono e morte sugerido pelos versos gregos, derivado de um texto homérico, no qual as duas divindades são apresentadas como crianças, filhas da Noite, pode nos ajudar a entender o motivo de
uma transformação tão radical da iconografia. À tradicional representação da Bacante possuída substituiu-se o tema do sono. Este é comumente representado, na estatuária antiga, por figuras que têm um braço dobrado
sob a cabeça. O gesto foi retomado por Michelangelo no famoso
Cupido Adormecido, que pertenceu à Isabella d’Este. Algardi executou uma versão do sono no mesmo gesto, em mármore negro, para Marcantonio Borghese em 1635. À coleção Borghese pertencia também a mais conhecida dentre as esculturas
antigas representando personagens adormecidas: o
Hermafrodita. Encontra-se uma versão deste hermafrodita em Florença, na qual ele é representado jazendo sobre uma rocha forrada por uma pele. Canova parece ter-se interessado por esse protótipo, como atestam as obras destinadas
sobretudo a clientes ingleses durante os anos de 1815 a 1820. Com certeza, o exemplo mais ilustre, devido ao prestígio de sua localização, é a
Náiadedo Buckingham Palace (1815-1817), da qual Villareale pode ter derivado o detalhe da pele da fera, ou ainda, a Ninfa Adormecida(1820), uma vez na coleção Landsdowne, hoje no Victoria & Albert Museum, manifestamente inspirada no Hermafroditaromano. O escultor siciliano parece voltar-se a esse momento particular da obra canoviana, acentuando as implicações eróticas do tema: o sono depois da embriaguez torna-se uma
petite mort. Escultura típica de interior, a Bacante coloca em jogo referências a textos literários, retomando a vocação ilustrativa da plástica barroca. Ao mesmo tempo, a evocação de um classicismo oculta uma atitude de
voyeurum pouco melindrosa, à laBoucher. Villareale antecipa, ainda que de um modo bastante diverso, certo classicismo neobarroco francês dos anos 40, que pretende encontrar na Antiguidade sobretudo o lado sensual e dionisíaco, chegando até o
confronto com a verdade. Veja-se, por exemplo, a célebre
Mulher Mordida por uma Serpentede Jean Baptiste Auguste Clesinger, de 1847, em que a figura contorcida é um verdadeiro decalque do corpo de madame Sabatier, ou o grupo
Sátiro e Bacantede Pradier, de 1837, com a mesma contaminação de referências à lírica erótica grega e à sensualidade do barroco. Villareale chega a essa interpretação particular do Antigo através do domínio da tradição histórica que
lhe permite combinar a abstração formal de matriz canoviana com uma inspiração de origem barroca, quase como um restaurador do século XVII, evidente no contraste vivaz entre o lúcido candor do mármore e a áspera
superfície do calcário.
A volúpia, a graça indefesa e incônscia, quase um animal a julgar pela postura, e a suavidade da anatomia, que refaz à la Jordaens as deusas de Rubens, transportam a um clima idílico o lado orgiástico, atemorizante e
dionisíaco do antigo, criando uma equivalência figurativa perfeita por meio da analogia entre êxtase, sono e morte, a que aludem os versos atribuídos a Anacreonte, poeta predileto da época das
fêtes galantes.