Um vento forte incide sobre uma solitária figura feminina numa paisagem noturna, melancólica, de solo verde‑oliva e céu azul‑ prussiano. A atmosfera é fria, inóspita, e o vento soprando os longuíssimos e ondulados
cabelos castanhos da personagem para fora da tela confere um tom dramático à cena. A personagem está de costas para o espectador, vestindo um traje cor‑ de rosa. Não vemos seu semblante, mas o formato de seu corpo —
tal como uma lágrima — sugere seu estado de espírito. Ela parece fitar o infinito da paisagem, ocupada por quatro elementos verdes, vegetações fantásticas verticalizadas que já se anunciavam em obras anteriores de
Tarsila. Se várias das pinturas, feitas em 1929, são luminosas, radiantes, coloridas, esta única e solitária tela pintada pela artista em 1930 tem tons escuros. Pode ser considerada um autorretrato. O ano de 1930
marca um ponto de inflexão na vida da artista, do país e do mundo. A abastada família de Tarsila, de fazendeiros cafeicultores, perde a fortuna um ano antes com a crise financeira internacional deflagrada pela quebra
da bolsa de Nova York. Em 1930, um golpe de Estado põe fim à República Velha, iniciada em 1889, e o país mergulha na chamada Era Vargas até 1945. No mesmo ano, Tarsila perde o marido e parceiro intelectual Oswald de
Andrade (1890-1954), que a abandona para ficar com Pagu, a escritora Patricia Rehder Galvão (1910-1962), num escândalo que chocou a sociedade paulista. Nada mais seria como antes.
Por Adriano Pedrosa
Todos nós que trabalhamos em Tarsila popularno ano passado nos emocionamos muito com o projeto — as pinturas, os desenhos e as histórias da artista, o entusiasmo do público, a repercussão da mostra e do livro, que teve duas edições esgotadas e angariou prêmios
no Brasil e no exterior. Hoje, um ano depois, com o MASP fechado e vazio, sentimos saudades das obras e dos visitantes no museu naquele outono, do carinho de Tarsilinha do Amaral, sobrinha da artista que nos visitava
quase que diariamente. Esta semana voltei ao museu para fazer uma ronda na pinacoteca, com saudades dos cavaletes, e lá reencontrei a
Figura só, essa verdadeira obra prima, única pintura executada por Tarsila no ano crucial de 1930, trabalho que ficou conosco depois da exposição por grande generosidade do colecionador Ronaldo Cézar Coelho. Hoje, essa
espécie de autorretrato se encontra só no museu, longe dos olhos do público, até quando não podemos dizer. Antes de saber que a pintura ficaria no museu em empréstimo, redigi seu verbete no catálogo: A personagem
está de costas para o espectador, vestindo um traje rosa; não vemos seu semblante, mas o formato de seu corpo — tal como uma gota de lágrima — sugere seu estado de espírito. Ela parece fitar o infinito da paisagem,
ocupada por quatro elementos verdes, vegetações fantásticas verticalizadas. Em 1929, a abastada família de Tarsila, constituída de fazendeiros cafeicultores, perdeu a fortuna com a crise financeira internacional
deflagrada pela quebra da bolsa de Nova York em outubro. Em 1930, um golpe de Estado põe fim à República Velha, mergulhando o país na era Vargas. No mesmo ano de 1930, Tarsila perde o marido e parceiro intelectual
Oswald de Andrade, que a abandona por Pagu, num escândalo que chocou a sociedade paulista. Nada mais seria como antes.