Apesar da formação de artista que recebeu na Académie Suisse, em Paris, foi com os jornais republicanos La Caricature e Le Charivari, na década de 1830, que Daumier se consagrou com seus desenhos satíricos sobre política e costumes. Sua obra coincide com a radical mudança do gosto causada pelas transformações sociais na França, resultado do fortalecimento da burguesia e da imprensa como meio de difusão de imagens e informação. Em 1860, abandonou os jornais para se dedicar à pintura. Daumier era um interlocutor próximo dos artistas realistas e costumava retirar temas da literatura. Duas cabeças fez parte de uma mostra de 98 trabalhos de Daumier, organizada em 1878 pelo escritor Victor Hugo (1802-1885), para ajudar o artista em um período de dificuldades financeiras. A pintura parece ser um fragmento, recorte de uma cena dramática que se completaria fora da tela. As duas personagens olham para o canto direito, anunciando um fato ou um terceiro elemento do qual só vemos uma mancha. Somente o rosto de uma das figuras é visível, com a expressão exacerbada por pinceladas rápidas e marcadas, enquanto a outra é vista apenas de perfil.
— Equipe curatorial MASP, 2017
A cabeça da direita, a única cuja fisionomia é visível, é de difícil identificação. Segundo Camesasca (1987, p. 56), poderia ser a do mesmo modelo, o advogado de defesa, que se vê em um outro quadro de c. 1855 (coleção Stokvis, Genebra) ou o médico nas duas versões do Malade (Imaginaire) dos anos 1862-1863 (Barnes Foundation, Merion; Museum of Art, Filadélfia), ou ainda uma das figuras dos Saltimbancos à Mesa, de c.1865 (coleção Simon, Fullerton).
Conforme aventa J. Adhémar (1954), hipótese acolhida por Camesasca (1987, p. 176), a obra pode ser identificada com o n. 45 ou n. 47 da exposição de 98 trabalhos de Daumier, promovida em 1878 pela Galerie Durand-Ruel de Paris. A mostra, presidida por Victor Hugo, era uma iniciativa dos amigos para socorrer o artista, então com a vista abalada e em dificuldades financeiras. Tratando-se de fato de uma destas duas obras, a pequena tela do Masp – Duas Cabeças – dataria de 1860 aproximadamente, data que de qualquer modo parece confirmar-se por razões estilísticas. Incluída no projeto da grande exposição Daumier de 1961 na Tate Gallery de Londres, não foi contudo enviada, conforme documentação do Masp.
Daumier é um pintor pleno nesta obra, além do mais dotado de uma radicalidade de meios expressivos sem par em sua geração. Único herdeiro da última poética de Goya, Daumier é capaz de imprimir, no revolver-se caótico da lama luminosa, a estampa do trágico.
— Autoria desconhecida, 1998