Henri Matisse passou por várias academias de arte em Paris, mas encontrou seu estilo a partir de 1895, com o grupo de pintores que ficou conhecido como “fauve” (“fera”, em francês) — a denominação se deve a uma crítica negativa a seu trabalho exposto no Salon d’Automne de 1905. A pintura fauvista é caracterizada pelos temas do cotidiano, pela estilização e simplificação das formas, pela ruptura com a perspectiva clássica, pela ausência de gradação entre matizes, e pelo uso de cores vibrantes, que não correspondem a um referencial de realidade. Em oposição ao cubismo, que explorava cada objeto a partir de vários pontos de vista, o artista optava pela frontalidade das figuras. O torso de gesso é um entre seus muitos nus, odaliscas e interiores. Nessa obra há um diálogo entre os objetos em primeiro plano e os que estão ao fundo: o torso sobre a mesa tem a mesma posição da mulher no quadro da parede; a cortina em azul e branco dá continuidade ao motivo do arranjo de flores; a mesa, que confere um senso de profundidade ao ambiente, opõe‑se à cadeira à esquerda. Assim, todos os elementos em cena parecem se fundir em um movimento sinuoso.
— Equipe curatorial MASP, 2015
Por Luciano Migliaccio
A crítica é unânime quanto à datação do quadro O Torso de Gesso, o ano de 1919. Quanto ao local de sua realização, alguns julgam ter sido em Issy-les-Molineaux (Paris). Trata-se de uma pintura de interior que tem suas referências históricas em Chardin e sobretudo na Natureza-Morta com Estátua de Gesso de Cézanne. No quadro, aparecem vários elementos iconográficos: flores no vaso e no painel azul pendurado na parede, o nu feminino representado pelo fragmento de gesso na mesa e por um desenho na parede semelhante às esculturas do próprio Matisse e, por fim, a mobília. O diálogo formal entre os objetos tridimensionais do primeiro plano e os elementos bidimensionais corresponde no fundo ao diálogo mais complexo entre os conceitos de arte e de natureza. Segundo Schneider, o torso feminino é um molde de uma escultura grega da época helenística; de fato, este torso apresenta semelhanças com a Vênus de Milo e outras esculturas do mesmo período. Sabemos que Matisse copiou estátuas antigas no Louvre, conforme a tradição acadêmica na época de sua formação, e ainda em 1926, ele recomendou a seu filho, Jean, o estudo das figuras gregas, que considerava “ricas na forma, cheias, compactas, com cilindros como membros”. Contudo, nenhuma das esculturas gregas, entre as mais conhecidas, mostra esta configuração corpórea, exceto As Bacantes de Scopas. Entretanto, tais tipos de torsos eram comuns nas escolas de arte do final do século passado. Camesasca lembra várias pinturas e desenhos com cópias de gessos antigos de Van Gogh, da época em que este freqüentava o ateliê de Fernand Cormon, em Montmartre, nos anos de 1886-1887. A peça antiga, na verdade, inscreve-se nas modalidades figurativas da vanguarda contemporânea. Como nota o mesmo autor, Matisse parece convidar-nos a uma comparação entre o nu clássico e a própria escultura representada pela figura desenhada na parede, cuja postura é aquela da Vênus ajoelhada de Doydalsas de Bitínia, conhecida por inúmeras cópias romanas. Pierre Matisse, filho do pintor, advertiu porém que, apesar das aparências, o torso não é antigo, mas é um molde, comprado pelo artista e que foi realizado a partir do modelo vivo. O diálogo entre vida e representação, entre pintura e escultura, adquire assim um significado mais complexo. A relação entre as flores na mesa e aquelas na tapeçaria representa uma variação do mesmo tema. No tecido aparece um cesto de flores que, em sua estilização, possui uma vida igual àquela das flores tridimensionais no vaso. Camesasca nota também a proximidade do uso da escultura antiga feito por Matisse com a pintura de Giorgio De Chirico em Incertude du Poète de 1913, excluindo porém uma influência do italiano sobre o pintor francês. A negação não pode ser tão categórica. De fato, na pintura metafísica, De Chirico usa a justaposição de elementos antigos e contemporâneos para criar uma sensação de estranhamento e de enigma. É possível citar a Ariana de De Chirico de 1916, cuja postura, com o braço levantado, lembra aquela do nu desenhado no quadro do Masp, e é retomado por Matisse no Nu Azul. Diferente, porém, é o significado da citação clássica para os dois pintores. Em De Chirico, essa é a memória de um passado inatingível e carregado de lembranças pessoais; em Matisse, pelo contrário, a citação faz parte de um discurso formal sobre a própria representação. A mesa sobre a qual o gesso está colocado parece quase uma lembrança irônica da espacialidade cubista.
— Luciano Migliaccio, 1998