Tarsila compôs diversas marinhas com barcos, um dos muitos temas populares que representou. O exemplar mais complexo é Porto I (1953), obra da chamada fase Neo Pau-Brasil, dos anos 1950, em que a artista revisitou o estilo e os assuntos de telas feitas por ela entre 1924 e 1928, com motivos tipicamente brasileiros e cores “caipiras” — o rosa, o azul e o verde em tons brilhantes, supostamente inadequadas para uma refinada pintura moderna ao gosto da época. Em Porto I, nove embarcações de diferentes formatos e dimensões apontam para múltiplos lugares, ocupando a superfície do quadro quase por inteiro. Trata-se de uma estratégia de composição frequentemente utilizada por Tarsila, com um esquema de profundidade estilizado, em que os elementos abrangem toda a tela em fileiras ou camadas de baixo para cima, em sobreposição, evocando pinturas de Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Agostinho Batista de Freitas (1927-1997). Os contornos bem definidos das formas e suas distintas áreas de cor são construídos em diálogos contrastantes e complementares, em uma composição que, embora figurativa, é geometrizada, povoada por triângulos, círculos, trapézios, losangos, quadrados que também desenham uma marinha. O maior jogo entre figuração e abstração geométrica está no centro da tela: a parte superior do navio rosa surge como uma intricada escultura construtiva em cinza, ocre e branco, cheia de retângulos e quadrados. Com um tema aparentemente singelo como a da marinha com barcos coloridos, Tarsila esboça um sutil e poderoso comentário sobre as possibilidades de articulação entre a abstração geométrica e a figuração.
— Adriano Pedrosa, diretor artísitico, MASP, 2019