Nascido em Cadore, na época território da República de Veneza, Ticiano tornou-se um dos mais reconhecidos pintores da renascença. Na juventude, frequentou os ateliês de Giovanni Bellini (circa 1430/35-1516) e
Giorgione (1477-1510). Ele foi um dos primeiros pintores a utilizar preferencialmente a cor como elemento constitutivo da composição, substituindo o desenho pelas manchas cromáticas. Suas pinturas são marcadas por
grandes formatos e por cenas de impacto emocional. Foi o mais famoso retratista de sua época, criando uma nova interpretação do gênero, o chamado “retrato em ação”, que unia a fidelidade da representação das
fisionomias com alusões ao papel histórico, político e social dos seus modelos. Por isso, foi o artista preferido de Carlos V (1500-1558), o imperador do sacro império romano-germânico, do papa Paulo III (1468-1549),
entre outros. Na pintura do MASP, o cardeal Cristoforo Madruzzo (1512-1578) foi retratado em pé e sem as vestes roxas características de sua elevada posição na cúria romana. Madruzzo era príncipe e bispo da cidade de
Trento, e teve papel destacado nas negociações que levaram à escolha da cidade como sede do Concílio (1545-63), participando ativamente das discussões que deram início à Contrarreforma, resposta da Igreja católica à
Reforma protestante. O retrato foi pintado nessa época. O relógio sobre a mesa, à esquerda, é um elemento comum nas representações de figuras políticas desse período, alusão à efemeridade e à fugacidade do tempo e do
poder, que deve ser um estímulo para a prudência do soberano.
De retorno de uma segunda estada em Augsburgo, em 1551, Tiziano retrata Cristoforo Madruzzo nos anos em que este é, em Trento – na qualidade de príncipe-bispo da cidade –, o anfitrião do grande Concílio de 1545-1563.
O perfil histórico deste fundamental personagem da história política e eclesiástica da Europa do século XVI foi mais bem delineado por ocasião da exposição de 1993, em Trento, dedicada aos Madruzzo. Filho mais jovem
de uma família aristocrática, a se destinar portanto à carreira eclesiástica, Cristoforo Madruzzo (1511-1578) estuda Direito em Pádua, onde em 1531-1532 recebe as ordens menores, e Jurisprudência em Bolonha
(1532-1537), enquanto ocupa a posição de “procuratore della nazione germanica” (sua mãe, Eufemia Sporenberg, era alemã) e galga, paralelamente, com notória avidez, todas as dignidades clericais até o cardinalato,
obtido com uma nomeação in pectore no consistório de 1542. Durante dois anos, 1556-1557, assume o cargo, politicamente delicado, de governador de Milão, em nome do Imperador. Defensor declarado dos interesses
hispano-imperiais, Madruzzo tenta desempenhar um papel de mediador nas diferenças que opunham então a Igreja à causa espanhola, sendo esta talvez a razão pela qual, como cogita Robertson (1983, p. 227), não envergue
aqui a indumentária cardinalícia. Em 1567, lega os títulostridentinos ao sobrinho Ludovico Madruzzo e morre em 1578, em Tívoli, hóspede do cardeal d’Este. O relógio, que ocupa uma posi- ção tão preponderante no
Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo(presente não raro na retratística tizianiana), acompanhou curio- samente os deslocamentos da obra e foi ainda visto por Cavalcaselle em 1877, na residência dos barões Salvadori. Objeto de diversas interpretações,
ele deve simbolizar, como aventa Panofsky (1969), e sem prejuízo de eventuais significações mais pontuais ou circunstanciais engenhosamente repertoriadas por Camesasca (1987), um
memento mori, uma advertência sobre a transitoriedade da glória e a necessidade da temperança. Como tal, é um lugar-comum da retratística veneziana e comparece, por exemplo, ainda num retrato de Paris Bordon, conservado no Masp.
Segundo Wethey (1971), o quadro
Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzofoi “ligeiramente reduzido em baixo e no lado direito”. A sucessão precisa dos proprietários da obra foi restabelecida por Camesasca (1987, p. 84), desde a própria residência do cardeal Madruzzo, o Castello del Buon
Consiglio em Trento (1552-ante 1658), passando ao Palácio Roccabruna na mesma ci- dade (1682-após 1735), aos herdeiros dos novos proprietários, os barões Gaudenti della Torre, que a legam em 1855 aos barões
Salvadori, os quais a vendem por volta de 1905 à Casa Trotti & Cia., de Paris, que a transfere a J. Stillman, cujos herdeiros levam-na a Nova York antes de 1907. Em 1942, o Madruzzo passa a pertencer a Mrs. Avery
Rockfeller, que a vende à Galeria Knoedler, por intermédio da qual a obra é adquirida pelo Masp.
O estado de conservação da obra foi avaliado de modo muito contrastante pelos estudiosos, de Cavalcaselle e Fogolari a Wethey e Camesasca. Embora severo em seu julgamento sobre um “desviante restauro” da obra
ocorrido antes de 1907, Camesasca escreve em 1987 que “nenhum motivo faz duvidar da possibili- dade de recuperar o jogo refinadíssimo de pretos sobre pretos, do qual deveria aflorar boa parte da qualidade
originária”. E, com efeito, após a restauração de que acaba de se beneficiar a obra (1992-1995), confiada aos cuidados de Andrea Rothe, da Getty Foundation, revela-se ela na sua mais plena e feliz visibilidade.
Malgrado sua desfavorável situação conservativa anterior e sua localização descentrada, a obra foi sempre objeto de avaliações superlativas, desde Cavalcaselle que, no século passado, definia-a como “um dos retratos
importantes da escola vêneta”, até Pallucchini que, em 1969, fala de “uma pasta cromática já digna de Renoir”, para concluir: “Jamais como nesta imagem Tiziano soube imprimir o senso de uma vida fluida e corrente,
colhida em uma atitude, em um movimento, em um olhar; a personagem revive assim em uma inteireza física e espiritual. Nesse retrato de figura inteira, Tiziano mostra saber ambientar o modelo em uma nova dimensão
temporal, captada mediante a perfeita
aisancedo seu meio pictórico, fluido e atmosférico a um só tempo”.
A controvérsia sobre a data 1552 inscrita duas vezes no quadro, pretensamente incoerente em relação a uma imprecisa men- ção de Vasari e ao fato de o retratado não se apresentar em há- bito cardinalício (quando fora
já investido de tal dignidade em 1552), suscitou diversas hipóteses de datações alternativas até 1542 (Pallucchini 1952-1953; Valcanover 1542), hoje aparentemente su- peradas, como se verifica nos estudos mais
recentes do próprio Pallucchini (1969), de Wethey (1971) e de Camesasca (1987). A data 1552 é ainda confirmada pela idade declarada do cardeal, 39 anos (e não 38, como transcreve Pallucchini), pois é sabido que
nascera em 5 de julho de 1512 (Vareschi,
inDal Prà 1993, p. 57). E sobretudo por suas características de estilo que, como foi já notado por Camesasca, aproximam-na do retrato de Filipe II, do Prado, de 1551.