Ingres foi aluno de Jacques‑ Louis David (1748-1825), figura central do neoclassicismo francês. Ainda jovem, afirmou‑ se recebendo importantes encomendas oficiais do regime napoleônico. Em 1806, viajou a Roma, onde
permaneceu até 1820, quando se mudou para Florença. Na Itália, tornou‑ se um dos retratistas mais requisitados. Voltando a Paris, em 1824, consagrou‑ se líder da escola clássica francesa. Além da fácil contraposição
entre Ingres, clássico e desenhista, e Eugène Delacroix (1798-1863), moderno e colorista, os inúmeros desenhos mostram como Ingres possuía uma enorme erudição, que se estendia desde a pintura dos vasos gregos até a
arte maneirista. Ele soube reunir todas essas referências em suas composições por meio do desenho, pensado de forma puramente decorativa, ou seja, em função do equilíbrio formal e sem preocupações naturalistas. É o
caso de
Angélica acorrentada, em que o artista modifica as proporções e os volumes do corpo para alcançar o efeito dramático desejado. A obra remonta ao poema épico Orlando furioso(1516), de Ariosto (1474-1533), em que a heroína é salva por Ruggiero do monstro marinho ao qual foi oferecida em sacrifício. O monstro é cegado pelo raio de luz que sai do escudo mágico do herói. O cavaleiro pagão
salva Angélica e ganha, então, o seu amor.
Por Luciano Migliaccio
A obra Angélica Acorrentadaé citada por Ingres em uma lista datada de 1859: “une Angélique, tableau” (Cahier X, em Lapauze 1901, I, p. 250) e é reproduzida numa gravura em água-forte (Flameng, Gazette des Beaux-Arts, XIV, 1re. pér., p. 19). O tema é inspirado no poema Orlando Furiosode Ariosto (X, 92). Angélica, heroína do poema e ideal dos cavaleiros cristãos, é libertada de um monstro marinho pelo pagão Ruggiero, que se vale do hipogrifo. Em 1819, em Roma, Ingres criou um quadro com esse tema,
que está no Louvre, em Paris. Outras versões encontram-se no Musée Ingres de Montauban (1841), em Londres, National Gallery (1839) e no Fogg Art Museum de Cambridge (Estados Unidos).
O quadro do Masp, de formato oval, apresenta em primeiro plano o nu de Angélica, assim como aparece num desenho preparatório para o quadro de 1819, conservado no Louvre. A escrita no verso, de punho do colecionador
Haro, nos informa que o quadro foi concluído por Ingres em 1859, a pedido do próprio Haro, a partir do estudo para a primeira versão. De fato, o mesmo nu feminino reencontra-se, com algumas variações, nas réplicas do
mesmo tema ou de temas semelhantes, como
Perseu Libertando Andrômeda. Uma outra composição semelhante, também sobre tela, depositada no Musée Ingres de Montauban, é considerada por Camesasca uma réplica, feita posteriormente para uma parente da segunda esposa de Ingres. Nociti (1994,
pp. 99-107) nota que o quadro do Masp é o único da série que respeita a narração de Ariosto de maneira literal. Ruggiero cega o monstro com a luz do seu escudo mágico do alto do hipogrifo e não o trespassa com a
lança, como São Jorge no quadro de 1819. O mesmo autor confronta a novidade da composição com as pinturas do maneirismo como a de Joachim Witwael (Paris, Louvre) ou de Cavalier d’Arpino (Bolonha, Pinacoteca
Nacional), representando Perseu e Andrômeda, e aproxima as deformações anatômicas evidentes no pescoço de Angélica, características das formas idealizadas dos nus femininos de Ingres, ao estilo linear da pintura dos
vasos gregos. De fato, nessa época, de John Flaxman a J. H. Wilhelm Tischbein, é freqüente, na ilustração dos poemas épicos, o uso das linhas puras do contorno na representação das figuras, o que pode ter
influenciado a técnica compositiva de Ingres.