Por Olivia Ardui
Sempre achei o tarô instigante enquanto ferramenta para exercer a imaginação e a interpretação, grandes aliadas na leitura de imagens. Quando vi
Taça da dúvida de Victor Brauner (1903-1966) pela primeira vez nos cavaletes, estava finalizando um livro sobre os arcanos do tarô no mundo das artes com Marco Antonio Mota. Imediatamente reconheci um arcano presente diante de mim
que, como uma esfinge, formulava um enigma com sua face-perfil e o complexo sistema de símbolos e significados duplos que ali se apresentavam. A figura feminina segura uma taça-fonte cuja água chega até a garganta
antes de desaguar em dois círculos-seios. Se o semblante inexpressivo de seu rosto evoca o silêncio, talvez seja para escutar melhor, como o sugere o gesto da mão à orelha ou ainda os contornos coloridos de formas
geométricas imbricadas que lembram ondas e ecos reverberando deste ou outros mundos. Uma escuta sensitiva que não deixa de remeter à própria experiência do pintor romeno que, desde criança, desenvolveu sua
mediunidade e esteve em contato com misticismos diversos e fenômenos paranormais. Entre os surrealistas ficou conhecido como um pintor vidente, ao realizar um autorretrato com olho mutilado, uma espécie de presságio
de um acidente em uma briga que, anos depois, lhe custaria a visão de um deles. Eu me pergunto se o pintor em algum momento chegou a vislumbrar o destino de sua obra que, um ano depois de pintada, ao ser exposta na
galeria Julien Levy em 1947 em Nova York, seria adquirida junto com uma tela do mesmo ano para o acervo do MASP.
Por Luciano Migliaccio
Segundo Aguilar (1991), Brauner experimentou com tanta acuidade a imagética pré-colombiana que produziu novos programas visuais astecas. Dentro da disciplina cubista, tal como abordada por Klee, Brauner cria figuras
planas que só conseguem escapar da mera bidimensionalidade pela audácia de incendiar de amarelo-ouro o plano do fundo –
Taça da Dúvida (Coupe du Doute)e Arquitetura Pentacular. A partir da janela incandescente, a figura se ejeta, com o rosto tratado em dois momentos, simultaneamente de frente e de perfil, procedimento retomado mais da fase mediterrânea que da fase cubista de Picasso.
A espacialidade está sugerida pelo leve inclinar da taça que equilibra pesos da mesma densidade, ao mesmo tempo frutos, seios e fonte. Como uma carta de tarô vinda de uma antigüidade remota, da qual traz as marcas na
textura, a figura possui a força simbólica dos ídolos antigos e dos brasões, pronta para ganhar vida somente aos olhos dos iniciados. O poeta René Char escreveu sobre a arte de Brauner: “após longas efervescências e
uma maturação de angústia, Victor Brauner empunha a fábula de nossa grandeza desamparada e a reintroduz em seus retratos de Faium, afrescos da Vila dos Mistérios de Pompéia, beijo do Judas de Saint-Nectaire, corvos
fuziladores de Van Gogh. Brauner caminha no limite do centro solar e beneficamente”. Para Alain Jouffroy, Brauner é o único que ultrapassou a experiência surrealista como havia sido ilustrada por Dalí e Magritte, de
um lado, e por Max Ernst, de outro. Sua obra possui essência simbólica e é, ao mesmo tempo, autobiográfica, ao exprimir de forma original as angústias e as inquietudes do homem contemporâneo.