O corpo inteiro de Cristo Ressuscitado encontra-se representado em pé, coberto pelo sudário e por uma atadura nos ancos. Mostra a mão esquerda com a marca dos pregos e, com a direita, sustenta o cálice, recolhendo o sangue que jorra da ferida. A estátua
encontra-se muito danicada. Foi colocada possivelmente em um nicho ou, o que é mais provável, emparedada ao muro, do qual foi violentamente destacada, fragmentando-se. Posteriormente foi recomposta por uma série de
remendos, evidentes sobretudo na região das pernas e nos dedos da mão esquerda. A parte posterior foi, de certo modo, reparada, preenchendo-se as lacunas com cimento. A ficha do inventário atribui essa obra ao
escultor lombardo Cristoforo Solari, chamado “il Gobbo”, e sugere que possa provir da fachada do Duomo milanês. Isto é justicável sobretudo considerando-se o material: o mármore de Candoglia, de fato, é exclusivo do
canteiro milanês, embora as dimensões da escultura sejam bastante reduzidas, e os detalhes da barba e da cabeleira cuidadosamente trabalhados. Além disso, a obra não apresenta sinais muito evidentes de uma exposição
aos agentes atmosféricos. É difícil, portanto, precisar se a estátua provém de uma decoração do exterior da catedral ambrosiana ou se provém de uma decoração de interior, pertencente ao altar ou ao tabernáculo
eucarístico. Nem é possível, tampouco, excluir a possibilidade de a estátua ser de outra origem, não milanesa.
O tema deriva, talvez, da iconograa do Cristo portador da cruz e adorado por um anjo que recolhe o sangue no cálice, como se vê no relevo de Agostino di Duccio, no Templo Malatestiano de Rimini, ou na pintura de
Giovanni Bellini, na National Gallery de Londres. Em uma pintura de Crivelli, encontrada no Museu Poldi Pezzoli de Milão, proveniente da região italiana Delle Marche, área cultural de inuência vêneta, o cálice é
sustentado por São Francisco em frente ao Redentor. Essa iconograa foi relacionada pelos estudiosos com a questão levantada por São Giacomo della Marca, no decorrer de suas predicações em Brescia, 1462, acerca da
divindade do sangue de Cristo. A obra do Masp, devido à ausência de acentos particularmente dramáticos na interpretação, e também a certa imitação do Antigo, parece pertencer a uma época posterior. O Cristo aqui
representado não é aquele histórico, mas o glorioso após a Ressurreição. Ele recolhe o sangue no cálice para oferecê-lo aos éis, participantes da Eucaristia. A dor do martírio, típico das guras do Cristo da Paixão é,
no caso dessa obra, transgurada em nobre grandeza. O escultor exprime essa passagem adotando a iconografia do nu heróico, derivada da estatuária clássica. A equivalência entre representações de Cristo e do herói
pagão é justi cada, precisamente, pela forte conotação sacramental da imagem, que sublinha a divindade do sangue do
Messias e o seu sacrifício.
O nome de Cristoforo Solari não parece corresponder perfeitamente ao classicismo da obra que se encontra em São Paulo. O escultor milanês possui uma veia de naturalismo até mesmo nos momentos de inspiração áulica,
como nos retratos para o sepulcro de Ludovico, o Mouro, e de sua esposa, em Certosa de Pavia, de 1495-1499. Nas obras posteriores, Cristo na Coluna ou Adão, do duomo milanês, o seu estilo se desenvolve em sentido
dramático. Faltam, no Cristo do Masp, alguns traços característicos das sionomias de Cristoforo: as sobrancelhas contraídas, profundamente desenhadas e de forma abundante, a cabeleira e a barba divididas em sulcos
ondulantes, as pupilas feitas com a punção. Em vez disso, a estátua do Masp, ainda que evidencie a inuência da arte de Solari – devido à imitação quase arqueológica da estatuária pré-helenística –, faz pensar no que
Venturi deniu como neoclassicismo veneziano do começo do século XVI. Também Mântua, onde era conservada a relíquia do preciosíssimo sangue de Cristo, foi nos mesmos anos um dos centros mais importantes de difusão da
cultura que imita o Antigo, graças à presença de Mantegna. Nessa cidade trabalhavam escultores como Antico e, sobretudo, Giancristoforo Romano, que chegara de Milão. No Museu do Palácio Ducal conserva-se um relevo em
tufo, atribuído por Fiocco ao próprio Mantegna, representando a gura isolada do Cristo que verte o próprio sangue no cálice: uma iconografia muito próxima à do Cristo aqui apresentada. Devemos então pensar em algum
escultor mais jovem do que Solari e que, a seu exemplo, pudesse reunir a experiência mantegnesca e veneziana.
Os detalhes do rosto, sua tipologia quadrangular de barba bem curta e encaracolada denotam que o autor do Cristo que se encontra no Masp foi inuenciado pelo estilo dos relevos feitos por Tullio e Antonio Lombardo,
para a basílica do Santo em Pádua. O drapeado do sudário que pende do braço esquerdo e envolve a parte posterior da gura até cobrir-lhe a perna direita parece, entretanto, inspirado em modelos voltados ao classicismo
romano, introduzidos em Milão principalmente por Agostino Busti, conhecido como Bambaja. Possivelmente, um certo caráter leonardesco encontrado no rosto de Cristo, em que os volumes quadrangulares se dão por meio de
delicadas passagens de claro-escuro, é também uma inuência do mesmo artista. Mas a animação maneirística do panejamento de Bambaja e a sua atormentada vitalidade estão ausentes da escultura paulista: os panos estão
enrijecidos e constituídos por sulcos verticais, como nas colunas clássicas, parecendo uma derivação literal das togas nas estátuas representativas de oradores antigos, algo que não desagradaria Giancristoforo
Romano. As proporções sobrecarregadas fazem pensar, ainda uma vez mais, em Solari. No entanto, a anatomia, particularmente o tratamento dado aos músculos peitorais e às costas, é mais tênue do que aquele dado às
guras de Cristoforo. Acrescente-se que, devido à provável localização da obra, distante do olho do observador, ela foi realizada com volumes redondos e pouco marcados, sobre os quais a luz se esfuma delicadamente,
como ocorre nas obras de escultores mais sensíveis às sugestões de Leonardo, por exemplo, Giovambattista da Sesto ou os Aprile de Carona. Por esses motivos, parece apropriado sugerir o nome de Andrea Fusina, que
trabalhou no canteiro do Duomo de Milão até a sua morte, ocorrida por volta de 1526. Uma comparação entre as esculturas do monumento Birago, executado em 1495, e o Josué ou o Judas Macabeu, no Museu do Duomo de
Milão, mostra características semelhantes nos cabelos decorativamente armados, nos panos que se inspiram no estilo que imita a escultura pré-helenística e na denição das imagens, de li be ra damente tomada de
convenções antigas e tão pouco clássica nas proporções.