Por Mateus Nunes
Em E as vísceras mergulham num profundo mar azul, pintura do acervo do MASP, Anna Bella Geiger nos relembra de que somos híbridos. A obra, embora nos permita sonhar em um profundo mar azul — que, pela técnica da gravura, também nos proporciona observar seu
reflexo, um céu estrelado —, nos lembra de que o sonho é visceral, matéria intrincada das entranhas humanas. De maneira híbrida e espelhada, as vísceras são primitivas mas humanas; e o mar, embora translúcido, é
obscuro e poderoso em suas profundezas. Geiger a produziu num contexto efervescente da política brasileira, que, juntamente com um grupo de artistas do Rio de Janeiro, buscava alternativas eloquentes, por vezes
formais, à repressão da Ditadura Militar no Brasil. Conectando-se com suas reflexões sobre um decolonialismo e as dinâmicas entre as artes local e global que se perpetuam em toda sua trajetória, Geiger nos apresenta
um Atlântico que nos une e nos afasta, além das duras e viscerais trocas que aconteceram na formação da sociedade brasileira. O azul transatlântico e a carne viva, assim como utilizado retoricamente por Adriana
Varejão, nos questionam sobre a dualidade das coisas — o preto e o branco, o bem e o mal, o
nativoe o alienígena, o indivíduo e o todo — e nos apresenta a complexidade, ora desconcertante, ora acolhedora. Além da imagem gravada, seu título ainda é um poema: a palavra é indissociável da obra da artista. Somos banhados pelo
mesmo mar. Temos as mesmas entranhas. Podemos sonhar com a liberdade e o infinito em meio ao caos visceral.