Tudo indica que Tintoretto frequentou o ateliê de Ticiano (1488/90-1576), do qual teria sido afastado por conflitos com o mestre. Grande parte de suas pinturas pode ser encontrada em diversos locais na cidade de
Veneza, com destaque para as que estão no Palácio do Doge e na Scuola Grande di San Marco. O que distinguia Tintoretto de seus contemporâneos era o uso intenso da cor, reforçado por pinceladas rápidas e duras,
marcadas por interrupções abruptas. Distorcia a perspectiva, desorganizava a anatomia e intensificava os contrastes das cores para dar vibração às sombras, buscando uma maior expressividade e dramaticidade.
Interessava-se mais pela dimensão emocional por trás de cada cena do que pela fidelidade na representação. O MASP tem em sua coleção duas pinturas bastante distintas de Tintoretto, uma de sua juventude e outra da
maturidade. A obra
Ecce Homo ou Pilatos apresenta Cristo à multidão(1546-47) alude à passagem bíblica em que Pilatos consulta a multidão sobre o destino de Cristo. Na composição piramidal, o público assiste à cena das personagens que decidem o destino de Cristo em gestos teatrais,
como em um palco. O cachorro dá um toque de displicência à cena e poderia ter sido pintado para resolver uma grande área vazia branca e cinza.
Por Juliana Guide
‘Eis o homem!’, diz Pôncio Pilatos à multidão no momento em que apresenta o Cristo torturado. É essa passagem do evangelho de João que vemos representada no quadro de Tintoretto, feito entre 1546 e 1547. Na versão do
MASP, Cristo está em uma das laterais do quadro, no alto de uma escadaria, diante da qual o povo se amontoa. A composição tem pelo menos dois precedentes importantes: as versões do tema na gravura nórdica, aqui
representadas por Dürer, e a de Tiziano. Na invenção de Tintoretto, Pilatos leva a mão ao peito em atitude compassiva. A multidão assemelha-se a uma plateia. Não a vemos em exaltação furiosa contra Cristo, mas
principalmente assistindo ao drama que se desenrola. A hostilidade da situação é indicada pela presença das lanças e da bandeira romana, e pela figura que avança de pé pela escadaria e aponta na direção de Jesus. Os
reflexos luminosos em suas vestes, irrequietos e carregados do gesto do artista, explicitam a tensão do momento que precede imediatamente a condenação de Cristo pelo povo. É quase impossível que não chame a atenção
do observador de hoje o cachorro que dorme na escadaria, logo abaixo de Cristo. Tomo a liberdade de especular se a inserção do simpático animal não acaba por lembrar que, na perspectiva cristã, são determinados pela
vontade divina todos os destinos – sejam eles de cães, pessoas comuns ou do próprio filho de Deus.
A fonte do episódio encontra-se em João 19, 4, que descreve o processo de Cristo com signicativas variantes em relação a Mateus e Lucas, sobretudo ao enfatizar os esforços de Pilatos para dissuadir os judeus de uma
condenação. Tendo sido flagelado e recebido uma coroa de espinhos, Cristo é apresentado à multidão que se havia apinhado diante do palácio pretório. Pilatos dirige-se aos presentes com as palavras: “Eis o Homem”
(Ecce Homo), diante das quais os sacerdotes e a multidão prorrompem em uníssono: “Levai-o e crucicai-o” (Tolle, crucige). Segundo Sandberg-Vavalà (1929, p. 252, n. 7) e Réau (1957, p. 460), o tema permanece ignorado
na tradição iconográfica até o século XIV, com exceção de algumas representações em plaquetas de marm do século IX e em iluminuras otonia nas do século XI. É apenas no século XV que o tema se difunde aparentemente a
partir dos países da Europa setentrional em direção à Itália, onde se encontram as primeiras representações apenas no nal do século xv e início do xvi, com Fra Barto lommeo, Andrea Solario e outros.
Um
Ecce Homoé citado nos inventários da Galleria Gonzaga, de Mântua, com uma avaliação de 36 liras (Luzio 1913, p. 89). A obra foi publicada em 1913 por Von der Bercken e Mayer, e em 1924 por Pittaluga, que a data de
c.1547. Quando ainda estava na coleção Sedelmayer de Paris, Venturi (1929, xiii, pp. 437-440) republica-a e situa-a “entre as obras que representam a fase inicial de Tintoretto”. O autor dedica-lhe um longo comentário
a partir da hipótese, consensual entre estudiosos, de que a obra se inspira em parte no
Ecce Homode Tiziano no Museu de Viena, datado de 1543, na qual, como se sabe, Aretino é retratado na gura de Pilatos. Embora Coletti (1940) e Pallucchini (1950) tenham retardado substancialmente essa datação para o final dos
anos 60, o Ecce Homo de 1543 de Tiziano permanece um marco fundamental, e o próprio Pallucchini revisará sua opinião em 1965 e em uma carta a E. Camesasca, datada de 31/12/1976, em benefício de uma datação juvenil.
Para Bardi (1956), De Vecchi (1970) e Rossi-Pallucchini (1977), a obra deve efetivamente ser situada em torno de 1546-1547.
Obra de juventude, este
Ecce Homoé um documento eloqüente para se entender o primeiro estilo do pintor. É inevitável aproximá-lo do já mencionado Milagre do Escravo, da Galleria dell’Accademia de Veneza, de 1547-1548, pois em ambos comparecem duas figuras quase idênticas, inclusive no que se refere às suas vestes, ao seu colorido e mesmo à sua inserção na composição. É
igualmente evidente, como foi observado por Venturi, o impacto da grande cenograa diagonal criada pela escadaria do
Ecce Homo do Museu de Viena, que Tiziano havia pintado em 1543. Mas Tintoretto inverte a composição de Tiziano. A habitual leitura da esquerda para a direita tende a reforçar a agressividade do personagem que investe contra o
grupo de Cristo e Pilatos, de tal modo que as guras de Pilatos e de seu acompanhante, prenunciando as estilizações de El Greco, parecem arcar-se sob a pressão dessa investida. A narrativa adensa-se em um instante de
suspensão, quando o nervosismo fantástico dos reflexos luminosos parece eletrizar os personagens do drama, e as energias da multidão aprestam-se a eclodir nos gritos enfurecidos de
Tolle!, Crucige!,que selaram a sorte do prisioneiro. O cachorro, um dos lugares-comuns da pintura veneziana do Grande Século, empresta um toque de vida cotidiana à atmosfera de máxima tensão retórica.