Domenikos Theotokopoulos, apelidado El Greco na Espanha, teve sua primeira formação em Creta, numa tradição artística de origem bizantina. Antes de 1567, mudou-se para Veneza, onde admirava, sobretudo, as pinturas da
fase final de Ticiano (1488/90-1576) e os dramáticos efeitos de luz e espaço das obras de Tintoretto (1518-1594). Em 1575, transferiu-se definitivamente para a Espanha, estabelecendo-se dois anos depois em Toledo,
antiga capital e grande centro intelectual, onde trabalhou especialmente em obras de temática religiosa. O
Êxtase de são Francisco com os estigmasfaz parte de um conjunto de aproximadamente setenta obras assinadas pelo artista em torno da figura desse santo. Embora várias delas tenham sido atribuídas a seu ateliê, sabe-se que o próprio El Greco organizava suas
pinturas em séries quase idênticas, repetindo temas, modelos e dimensões, com a finalidade de comercialização. Nesta obra, a figura de são Francisco é retratada com capuz, vestindo sua tradicional túnica marrom
amarrada por cordas. Com a boca semiaberta e os olhos lacrimejantes voltados para um lampejo de luz no céu, o santo vive simultaneamente a elevação do êxtase e a dor dos estigmas, que podem ser notados nas chagas de
Cristo, cujas marcas aparecem no centro de suas mãos alongadas.
Assim como o tema do santo agonizante e confortado pelo Anjo, o tema de São Francisco em meditação penitencial ou em êxtase com os estigmas não deriva dos grandes ciclos franciscanos do Duecento, de Berlinghieri
(1235) a Giotto (
c.1296-c.1300 e c.1320), mas faz parte da assim chamada segunda iconografia de São Francisco, criada pela propaganda pós-tridentina. Esta, como se sabe, não apenas se afasta da tradicional abordagem narrativa, desenvolvida a partir
das fontes biográficas coevas de Tommaso Celano e São Boaventura (1263), mas sobretudo transforma radicalmente as características do jovem e risonho Poverello medieval, atribuindo-lhe feições envelhecidas e
emaciadas, um misticismo afeito ao êxtase, bem como a obsessão pelo crânio, emblemático do contra-reformístico
memento mori (Askew 1969, p. 280). É sabido que, por predileção pessoal ou de sua clientela, El Greco retornou a essa acepção específica da iconografia de São Francisco inúmeras vezes, das quais se inventariaram mais de setenta
variantes (Frati 1969). O protótipo do
Êxtase de São Francisco com os Estigmas de Cristodo Masp é provavelmente o exemplar que se encontrava outrora na capela San José de Toledo. Há diversas réplicas ou versões com variantes mínimas desta composição nos museus de Toledo – San Vicente e da Casa y Museu
de El Greco –, na coleção do conde de Guendulain y del Vado em Toledo, também ela assinada (Frati 1969, p. 75b), na coleção Goudstikker em Amsterdã, em uma coleção privada em New Orleans e outra ainda no Museu de
Pau, na França. Para Frati (1969, p. 75a), que desconhece, ou ao menos não menciona a versão do Masp, a versão de Pau deve ser considerada como a única autógrafa, as demais “devendo ser atribuídas a discípulos”. Para
Wethey, ao contrário, essa versão de Pau denota larga participação do ateliê, o que parece justo, enquanto a do conde de Guendulain y del Vado, embora assinada, seria igualmente obra de ateliê.
Dentre as versões examinadas, a do Masp é a de mais sutil pincelada, a mais refinada no jogo de claro-escuro e a mais convincente na caracterização psicológica da personagem. Nos termos em que a formulam San Juan de
La Cruz e S. Teresa d’Ávila, a luz contemplada pelo santo é ao mesmo tempo claridade e escuridão, manifestação sensível e ocultamento, metáfora e presença do sagrado. Assim, o feixe de luz tenebrosa que se converte
em uma língua de fogo, mais que iluminar, fulmina a estopa das vestes e o semblante do santo que recebe uma das mais pungentes imaginações de sua experiência mística, de êxtase e martírio simultaneamente. Segundo
Wethey (1962), a obra em questão deve datar do início do século XVII.