Dalton Paula transita por múltiplas linguagens, tendo como principal enfoque de estudo e trabalho o corpo negro e as religiões de matriz africana. Nas duas pinturas, comissionadas para a exposição
Histórias afro‑atlânticas(2018), no MASP, o artista faz uso de relatos biográficos para criar retratos de dois líderes abolicionistas: Zeferina (século 19) e João de Deus Nascimento (1761-1799). Zeferina foi uma líder abolicionista de origem
angolana, trazida ainda criança ao Brasil como escravizada. Ela se rebelou contra o sistema escravocrata e teve papel fundamental na criação do Quilombo do Urubu, atual Parque São Bartolomeu, no subúrbio de Salvador.
Símbolo de resistência, junto com indígenas e escravizados e escravizadas fugidos, Zeferina planejou um levante para atacar Salvador, matar os brancos e conquistar a liberdade. A insurreição foi desmantelada pela
polícia do Império, que prendeu sua líder e a sentenciou à morte. João de Deus Nascimento foi um dos mártires da Conjuração Baiana, conhecida como Conjuração dos Alfaiates ou Revolta dos Búzios (1798), movimento
emancipacionista de caráter separatista e popular, protagonizado, sobretudo, por negros e negras livres, libertos e escravizados, que lutavam pelo fim do sistema escravocrata e a posterior implantação de um projeto
republicano na Bahia. Os planos do movimento foram, porém, descobertos pela Coroa Portuguesa, que condenou à morte seus líderes, incluindo João de Deus. Dalton Paula, ao dar imagem a líderes negros esquecidos, propõe
uma reflexão sobre o apagamento desses personagens na história tradicional, além de possibilitar que suas imagens sejam disseminadas e celebradas.
Por Kleber Amancio
Estamos diante do retrato de um homem, negro. Concebido objetivamente, sem adornos, expressa o máximo interesse pela figura humana. É uma obra propositiva. Nosso herói veste um terno verde oliva que, bem cortado,
confortavelmente o envolve. A brancura da camisa e da elegante gravata, a barba, impecavelmente alinhada pela navalha, e os cabelos, cuidadosamente penteados, conferem-lhe distinção e altivez. As diversas matizes de
marrom complexifica sua cútis, contra-atacando certa tradição representativa branco-brasileira. Fomenta o debate racial, diferentemente da escultura da Praça da Piedade. O intrigante nariz bege, uma constante em sua
obra, põe foco na negritude, positivada. Ao colocar vistas claras em um dos líderes da revolta dos búzios, Dalton Paula não se furta, porém, em discutir a colonização, densa e brutal. A imagem disserta sobre João de
Deus do Nascimento, o alfaiate revolucionário que foi enforcado e esquartejado, sobre sua memória pública, construída a partir de uma perspectiva senhorial e acerca do programático silenciamento negro, um processo
recorrente, consciente, gestado na longa duração. “Falar é existir absolutamente para o outro”, nos dizia Frantz Fanon (1925-1961). Narrativa é poder. O perspicaz diálogo com as fotopinturas e com a pintura
afro-brasileira reposiciona tradições artísticas há muito subalternizadas. Um ataque veemente ao eurocentrismo. O interesse pelo passado surge, frequentemente, por demandas modernas. Ao visibilizar o escondido, ao
lhe propor uma face, restitui sua humanidade. Intervêm no ciclo de violência. Estamos, enfim, diante do retrato de um homem.