Em um contexto em que a “mestiçagem” — termo que passa por uma revisão, devido à sua origem etimológica racista — foi eleita como símbolo da identidade nacional, Emiliano Di Cavalcanti contribuiu com a criação de um
imaginário para a mulher negra brasileira. Ao passo que ela ganhava representatividade por meio das telas do artista, era também sexualizada.
Mulata/Mujer [Mulata/Mulher] (1952) é uma representação bastante singular, que destoa da maior parte das obras do artista com a mesma temática. Aqui, a mulher negra exibe um semblante seguro, uma postura firme; seu olhar fita o
do espectador com confiança e altivez. Parte de seu corpo e de sua pele estão à mostra; vemos seus braços, mãos, pescoço e rosto negros, mas não seu colo. De saia branca, ela porta uma camisa fechada sem mangas, com
delicados motivos de folhagens sobre um fundo colorido, compondo uma espécie de pintura dentro da própria pintura, no estilo tipicamente tardio do pintor, nos anos 1950. Apesar de a tela ser uma exceção entre os
retratos de mulheres negras realizados pelo artista, ainda assim Di Cavalcanti não conferiu um nome à retratada. Não sabemos quem ela é, o que reitera seu silenciamento e sua reificação. Vale dizer que a obra foi
também identificada com o título de
Mulata.
Por Kleber Amancio
Mulheres negras de pele clara são uma constante na obra de Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976). Há pelo menos uma dezena de telas nomeadas
mulata. Beleza, exotismo, libertinagem e sensualidade são conceitos geralmente associados a essas construções. Uma tradição à brasileira, de Gilberto Freyre, Jorge Amado, Ary Barroso e outros. Nessa chave suas respectivas
existências são condicionadas pelo olhar do outro. Um olhar que alimenta o imaginário social e tem consequências reais sobre suas vidas.
Mulata/Mujeré um caso sui generis— é atravessado por todas essas questões mas de forma diferente. Sua pele é mais escura do que as figuras que ordinariamente protagonizam essas imagens. Está mais próxima, portanto, da negritude. Nossa protagonista,
deliberadamente, cobre os seios e o sexo com os braços. Ao fixar nosso olhar em sua face entendemos não se tratar de timidez. A blusa folgada e sem decote e a estampa, colorida com motivos florais, terminam por
esconder o busto, diferentemente do quadro de 1947. As pernas estão inteiramente cobertas por uma saia de tecido, sem marcar seu quadril como de praxe. O olhar que nos lança é altivo e direto, não busca sedução tal
qual em
Samba(1925). A cena estabelece alguns jogos: entre o público e o privado, o ambiente íntimo e a rua vista através da janela, a arquitetura colonial e o gradil em Sankofa, o ideograma acã, da África Ocidental, semelhante a
um coração. Enfim, estamos diante de uma mulher negra nas Américas.
Por Guilherme Giufrida
Como antropólogo e curador, me interesso muito pela vida dos objetos. É fascinante ver as imagens da chegada das primeiras obras ao MASP no início da formação do acervo — a descida do avião, a recepção no porto, a
foto estampada nos jornais, como celebridades. Meu primeiro trabalho na curadoria do museu foi na mostra
Da bolsa ao museu, Comodato MASP B3, por ocasião do empréstimo por 30 anos de 65 obras pertencente às Bolsas de Valores, reunidas na B3. Várias pinturas de alguns ícones da arte brasileira do século 20, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Pancetti e
Guignard, vieram aprofundar e complementar a coleção brasileira do museu, que historicamente havia privilegiado a aquisição de arte europeia. Numa das primeiras visitas, a equipe do museu fez fotos das salas de
reunião da Bolsa no centro de São Paulo, ainda com as obras nas paredes, mostrando onde cada uma era exposta e de que forma testemunharam por décadas muitas das principais decisões financeiras do país. Hoje, as
pinturas são apresentadas nos cavaletes de vidro no MASP, para um público muito mais amplo. Ao vê-las ali, junto a outras centenas de obras do museu, especulo sobre as outras paredes (ou suportes) por onde passaram,
que cenas e eventos presenciaram silenciosas, até finalmente chegarem ao MASP.