Por Mateus Nunes
Quando da comemoração de 50 anos do MASP, em 2018, Lucia Guanaes foi uma das três fotógrafas convidadas para produzir ensaios sobre o museu a serem publicados no livro O MASP de Lina. Em sua série Limiares, a artista retrata um cotidiano identificável, em que qualquer pessoa ali retratada pode ser um de nós em nossas múltiplas relações com o museu. A obra permite refletir sobre a dualidade antropológica da cultura que se projeta sobre a natureza — nesse caso, da pinacoteca do MASP nas copas das árvores do parque Trianon, do outro lado da avenida Paulista. Na foto, o edifício-cavalete, suspenso no ar assim como as obras de arte expostas nos cavaletes de concreto e cristal de Lina Bo Bardi (1914-1992), tem sua imagem virtual elevada, lembrando as tradicionais representações do Juízo Final na história da pintura: do mundo profano, embaixo, e a gradação para o paraíso, no topo, como em O juízo final e a missa de São Gregório. A foto apresenta um ambiente de meta-exposição: os espectadores do museu vêem cópias de si observando obras no mesmo museu. Guanaes realiza esse jogo entre tempo e espaço real já em outras obras, por vezes incorporando o público espectador em suas fotos, quase como uma obra conjunta, participativa e aberta. O público, então, vê a si mesmo: não se escapa do museu e os limiares são dissolvidos. Guanaes nos faz refletir sobre o reflexo, sobre a imagem da imagem, e perceber que toda obra é espelho, de quem a produz e de quem a lê. As imagens-fantasmas, que levitam no ar e movimentam-se como em Pinacoteca MASP, de Michael Wesely, já não são somente as obras, mas são também quem as interpreta.
— Mateus Nunes, doutorando em História da Arte, Universidade de Lisboa, 2021
A obra O Juízo Final e a Missa de São Gregório trata-se do painel central de um retábulo provavelmente em forma de tríptico. A obra foi atribuída por Mercier ao Maître François, talvez um dos dois filhos de Jean Fouquet. Mercier vinculou-a a um grupo de manuscritos ricamente decorados da Cidade de Deus, de Santo Agostinho, conservados na Bibliothèque Nationale de Paris (ms. fr. 18-19), na abadia Sainte-Geneviève (ms. 246), assim como nas bibliotecas de Haia (ms. II), de Nantes (ms. 18) e de Mâcon (ms. 1 e 2). O protótipo dessa família de manuscritos é o ms. fr. 18-19 da Bibliothèque Nationale, datado de 1473 e ilustrado pelo Maître François, conforme demonstra uma carta de Robert Gaguin, Ministro-Geral da Ordem dos Trinitários, prestando contas de uma encomenda que lhe fora confiada por Charles de Gaucourt, camerlengo de Luís XI: “Robert Gaguin à Charles de Gaucourt, Chevalier doré, salut. Les indications des miniatures et l’agencement des ‘hystoires’ que vous avez commandé de peindre au livre de la Cité de Dieu ont été remis par nous au célèbre peintre François qui les a exécutés dans la perfection comme il s’y était engagé. C’est en effet un artiste si parfait dans l’art de peindre qu’Apelles s’inclinerait à bon droit devant lui...”(apud Fernand Mercier).
Embora ainda não sistematicamente estudado, o Maître François é com efeito um dos mais importantes pintores de manuscritos da assim chamada Escola de Tours, na segunda metade do século XV, haja vista não apenas os manuscritos da Cidade de Deus agrupados por Laborde e Mercier, mas sobretudo o Deus Pai em Majestade, da coleção Wildenstein de iluminuras destacadas, hoje conservada no Musée Marmottan (Wildenstein 1979, n. 191). Comparando-se a figura do Cristo em Majestade do painel do Masp com a figura dessa iluminura Wildenstein-Marmottan, percebe-se a enorme afinidade estilística entre os dois artistas, sintomática das estreitas relações artísticas entre a Touraine e as províncias aragonesas do Roussillon, Catalunha e Valência no século XV. A restituição do painel do Masp ao Mestre da Família Artés, embora inquestionável, não deve ofuscar a importância da iluminura francesa, especialmente da Provença e da região do Loire, para o estilo de nosso pintor.
A iconografia da obra em questão resulta da combinação de cinco iconografias: o Juízo Final, o Purgatório, a Cidade de Deus, a Missa de São Gregório e o Cristo Crucificado como Ecce Homo ou Vir Dolorum. Não obstante seu caráter compósito, trata-se de iconografia não rara na segunda metade do século XV e início do XVI, na França como nos estados aragoneses. Recordem-se, por exemplo, algumas representações idênticas do Mestre Cabanyes e de seu círculo de pintores valencianos, analisadas por Chandler Post (1938). Normalmente, esta iconografia articula num espaço simbólico, tal como no painel do Masp, a representação de um Juízo Final no qual o Paraíso encontra-se circunscrito pelas muralhas de uma agostiniana Civitas Dei, tendo à esquerda do Cristo o Inferno, com seus indefectíveis antipapas, e à direita o Purgatório, com a representação dos natimortos do Limbo e da humanidade rediviva. Ao centro, enfim, representa-se São Gregório, a quem aparece miraculosamente no momento da elevação da hóstia a imagem de Cristo como Vir Dolorum, mostrando-lhe as chagas da cruz, enquanto seu sangue cai no cálice da Eucaristia. Associada à “Missa de São Gregório Magno”, esta iconografia alude à lenda da aparição desta imagem de Cristo durante uma missa na igreja romana de Santa Croce in Gerusalemme (ou, segundo uma outra tradição, em São Pedro). O Santo teria doado um ícone bizantino à Santa Croce com esta representação, que alia o Ecce Homo, isto é, o Cristo seviciado e exposto ao sarcasmo da multidão, com a imagem do Cristo em um sarcófago, após a crucificação, como o atestam as marcas dos cravos e da lança. Um pequeno ícone em mosaico do século XIV, conservado em Santa Croce, seria possivelmente uma cópia de um protótipo muito mais antigo (séculos VII-VIII), o qual, por sua vez, ofereceria um registro coevo do milagre. A questão foi estudada nos últimos decênios sobretudo por Vetter (1963) e por Bertelli (1967). De acordo com o primeiro, o mais antigo exemplar conservado do tema é o ícone da sacristia da igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, datável do século XII. Na Itália, o tema se manifesta com certa recorrência já no século XIII, seja na iluminura (Réau 1957, II; Vetter 1963, pp. 199-214), seja na pintura toscana (Garrison 1949, n. 150; Marques 1987, p. 230), seja ainda na pintura vêneta (Garrison 1949, n. 152, 153, 267 e 268). Na Espanha, tanto em Castela quanto no Estado aragonês, são igualmente conhecidos diversos exemplares, dentre os quais cite-se a Missa de São Gregório de Pedro Berruguete, nas versões da Catedral de Segóvia e da Catedral de Burgos, que inspiraram certamente o Mestre Portillo, em seu painel do Museu de Budapeste (Nyerges 1996, p. 40), ou ainda o assim chamado Mestre da Missa de São Gregório (Museu Provincial de Segóvia). Um Ecce Homo de um pintor valenciano (o Mestre de Cuenca?) de finais do século XV, conservado no Louvre (R. F. 1950-1952), merece também ser mencionado.
A obra do Masp é um ponto de encontro e, apenas em certa medida, de síntese de elementos de cultura dos mais heteróclitos. O baldaquino que serve de arquitetura para a Missa de São Gregório é uma reprodução curiosamente fiel do que se encontra na igreja de Santa Croce in Gerusalemme. Trata-se em todo o caso de uma arquitetura de tipo claramente trecentista, tosco-romana, à maneira dos baldaquinos de Arnolfo di Cambio e dos Maestri Cosmateschi. Mas é de notar que também a precária e elementar perspectiva em que se representam arquitetura e altar mimetiza as simplificações espaciais da pintura do século XIV toscano. A paisagem que se descortina ao fundo não é especificamente toscana, embora possa nela se vislumbrar uma certa memória de suas colinas. No mais, tudo deriva de um compromisso entre as tradições góticas provençais e franco-flamengas, em especial o ouro do Empíreo, os brocados do santo, os sistemas de drapeados engomados dos anjos, a ausência de referências clássicas nas anatomias e nomeadamente no torso de Cristo, a indiferença pela unidade do espaço, o tipo de arquitetura celestial fortificada, o pavimento com lajotas azulejadas e decoradas de motivos florais, a variedade de um imaginário, pleno ao mesmo tempo de referências teológicas eruditas e de fábula, solidário em suma do mundo criado por Bosch. É de notar a presença, no Inferno, de Judas, com o saco de dinheiro à volta do pescoço, em oposição simétrica às almas que se libertam do Purgatório, oposição não indiferente às alegorias medievais dos Vícios e Virtudes, as Psicomaquias, que abundam na pintura francesa, e sobretudo picardiana, do século XV. Nenhuma referência precisa permite datar a obra do Masp, que, no entanto, não se deve separar significativamente de sua companheira do Museu Provincial de Valência, datada, como foi visto, de c.1512.
— Autoria desconhecida, 1998