Por Luciano Migliaccio
No interior de um pequeno bosque, circundado por montanhas, Vênus se enfeita, como para comparecer a um convite, ajudada pelas ninfas e pelo Amor. A deusa senta-se sobre um rochedo e contempla-se no espelho que uma
de suas companheiras segura, ajoelhada à sua frente. As outras, ao redor, trazem-lhe jóias. O menino Amor brinca com o arabique, indicando-o a duas jovens que se sentam à parte. Uma delas, fascinada, dirige-lhe o
olhar, enquanto a outra volta-lhe as costas, pensativa. Na segunda cena, Páris, à esquerda, na aparência de um pastor, reclina-se apoiando o cotovelo sobre uma pedra, enquanto examina as formas das três deusas nuas.
Mais próxima, Juno toca o próprio seio com a mão direita, indicando ao jovem o que lhe promete, se ela for julgada a mais bela. Aos pés da deusa, um menino segura uma cornucópia repleta de riquezas que se espalham no
chão. Vênus, sentada entre as duas rivais, estende a mão para receber o pomo, que Páris ainda segura. Minerva cobre-se envergonhada com seu escudo, enquanto um menino, ao seu lado, brinca com as armas das quais a
deusa se despiu.
Os dois quadros –
A Toalete de Vênuse O Julgamento de Páris– formam um pendant. São idênticos nas dimensões e os temas são momentos sucessivos de uma única narração. Em paralelo ao julgamento de Páris, presente na tradição da mitologia clássica, o pintor quis desenvolver uma divagação galante
ao apre- sentar Vênus maquilando-se com a ajuda das deusas das fontes e de seu filho, o menino Amor. A interpretação do mito, humanizado e tratado com espirituoso realismo, como um idílio pastoral, cheio de episódios
irônicos, é típica da cultura do primeiro quarto do século XVIII, inspirada pela corte francesa de Luís XV. Afabilidade, racionalidade, humor e galanteria eram os valores que se substituíam à grandiloqüência do
século anterior. Fora da França, essa cultura expressou-se nas obras de muitos pintores italianos, sobretudo vênetos e napolitanos, que trabalharam não somente na península, mas também nas cortes da Europa inteira, e
entre eles, Michele Rocca. Os dois quadros do Masp mostram como ele, longe de Roma, desenvolveu um estilo muito similar àquele das pinturas mitológicas do vêneto Jacopo Amigoni (1682- 1752), até quase se confundir
com ele. Como Amigoni, o autor das telas paulistas manifesta-se influenciado pela pintura de Luca Giordano e de Paolo de Matteis na interpretação dos temas, bem como na modelação das roupagens e na harmonia das
cores, azul-escuro e amarelo, verde-musgo e amarelo com violeta. Tipicamente amigoniana é a paisagem, com as nuvens e as montanhas modeladas com pinceladas de cor densa e com vivo sentido da luz, enquanto nos corpos
os contornos esfumados ressaltam as macias carnes femininas. Acrescenta-se na composição alguma lembrança maneirística de Parmigianino, evidente na Vênus que se contempla no espelho. O conjunto denota a capacidade do
pintor de assimilar as propostas da cultura francesa, chegadas a Parma nos primeiros anos do Setecentos, de uma maneira original e atualizada. As obras, embora sem fundamento, foram atribuídas a Nicolas Lancret, no
catálogo do leilão Guerra Duval, antes de serem adquiridas pelo Masp, onde receberam a atribuição a Michele Rocca.