Na pintura Principal peça do jogo (2018), No Martins apresenta o retrato de uma mulher negra, de olhos radiantes, vestindo uma longa camisa amarela, que, juntamente com um chapéu em formato de "rainha" (referência a peça do jogo de xadrez), destaca sua grandeza. Ao redor de sua cabeça, uma brilhante auréola ilumina a pintura e também sua face, cuja silhueta mescla-se com a de uma lua cheia. Seu longo cabelo cai trançado sobre seus ombros. Em um ângulo de baixo pra cima, ela é apresentada como a matriarca, aquela que se torna referência, que lidera, que gerencia e que ensina os princípios de uma sociedade, um núcleo familiar ou uma comunidade. A mulher negra é invocada por No Martins como centro e princípio da formação social. Trata-se de uma crítica à sociedade na qual vivemos, que está acostumada a reservar a essas mulheres os piores lugares. O artista propõe a virada desse jogo. A rainha, uma das peças de maior valor no xadrez, é decisiva e poderosa, ela pode encerrar uma partida e definir o seu final. A face segura dessa matriarca parece não temer o futuro e estar disposta a seguir tal caminho. O amarelo de sua camisa pode ser uma menção a Oxum, a divindade iorubá dos rios, das riquezas e da beleza feminina. Oxum é uma referência marcante também para as sociedades afro-diaspóricas, sua imagem é símbolo de força, sabedoria e de feminilidade da mulher negra. Sozinha, ela administra as águas doces e a vida de seus milhares de seres aquáticos. Oxum é uma matriarca, aquela que pode parar ou mover as águas, e assim são as mulheres negras nessa sociedade.
— Luciara Ribeiro, mestre em História da Arte, Unifesp, e Universidade de Salamanca, Espanha, 2021
Por Leandro Muniz
Em diversas pinturas e esculturas, o artista No Martins trabalha com o jogo de xadrez como metáfora das disputas de poder e conflitos raciais na sociedade, considerando que as peças simbolizam os diferentes papéis desempenhados nas hierarquias sociais e estão divididas entre “pretas e brancas”. Na pintura Principal peça do jogo, Martins questiona os lugares historicamente atribuídos às mulheres negras no contexto brasileiro, fugindo de estereótipos e das representações de subalternidade arraigadas sobre esse grupo. O fundo é azul acinzentado, como uma luz de crepúsculo, e no canto superior direito está escrita, com letras vazadas, a palavra “matriarca” — mulher que lidera ou é a base de um grupo ou família. Há uma auréola ou espécie de lua dourada atrás da cabeça da personagem, que está vestida com uma camisa ampla amarela, formando um campo de cor sólida e contrastante com o fundo atmosférico. Seus cabelos estão soltos atrás da nuca e ela veste uma espécie de chapéu ou penteado que reproduz a forma da peça Rainha no jogo de xadrez. A luz incide suavemente sobre seu rosto e o enquadramento em contra-plongée — quando a câmera no cinema está abaixo do nível dos olhos, registrando a cena de baixo para cima — reforça sua altivez e soberania. Ela olha para a direita, em algum ponto no horizonte fora do quadro, com um ar de esperança e determinação sobre algo que não vemos.
— Leandro Muniz, assistente curatorial, MASP, 2023