Perugino, nascido como Pietro Vannucci, era pintor e desenhista, e realizou trabalhos em várias cidades da Itália, principalmente em Perúgia, Florença e Roma. O pintor, que possivelmente foi discípulo de Piero della
Francesca (
circa1415-1492) e de Andrea del Verrocchio (1435-1488), colaborou com diversos artistas da época, como Sandro Botticelli (1445-1510) e Domenico Ghirlandaio (1449-1494), com os quais trabalhou nos afrescos das laterais da
Capela Sistina, no Vaticano. Embora seja hoje mais conhecido como o tutor de Rafael (1483-1520), Perugino deixou sua marca na história da arte italiana ao mesclar o modelo compositivo de Florença, caracterizado pela
figuração bem delineada, com o estilo pictórico predominante na Úmbria, que se distinguia pela estruturação do espaço a partir da arquitetura. Tais elementos podem ser observados na pintura do MASP,
São Sebastião na coluna, em que a figura humana, representada de forma clara e bem delineada, está centralizada e a profundidade é construída a partir da sobreposição de colunas, arcos e os padrões geométricos do piso. Segundo a tradição
cristã, são Sebastião foi um oficial romano que, ao converter‑ se ao cristianismo, foi condenado à morte por flechadas. O corpo nu, sem pelos, e o rosto pintado com traços delicados sugeriram uma leitura da imagem do
santo em termos homoeróticos em artistas do século 20, como Pierre et Gilles (1950 e 1953, respectivamente), Leonilson (1957-1993) e Derek Jarman (1942-1994).
Por Tomás Toledo
Em 2015 dedicamos toda a programação às coleções do museu, num processo de retomada da instituição, com a recuperação de expografias históricas de Lina Bo Bardi (1914-1992). As obras eram expostas ao lado de
documentos sobre elas na mesma parede, algo incomum, pois em geral documentos são expostos separadamente em vitrines. No processo de pesquisa para mostra
Arte da Itália: de Rafael a Ticiano, me deparei com vários documentos raros no arquivo do museu, e duas histórias me cativaram especialmente. A primeira envolvia a pintura São Sebastião na coluna, de Perugino, uma de minhas preferidas da coleção italiana, que teve a atribuição de autoria confirmada pelo historiador italiano Roberto Longhi (1890-1970) em carta ao diretor-fundador do museu Pietro Maria Bardi
(1900-1999). Ler o manuscrito original de Longhi foi algo muito especial—seu
Breve mas verídica história da pintura italianafora uma importante leitura em minha formação. A outra história é sobre Ressurreição de Cristo, de Rafael (aluno de Perugino), que havia sido comprada em um domingo de Páscoa na galeria Knoedler, de Nova York, por Assis Chateaubriand, fundador do museu, acompanhado por Walther Moreira Salles, um dos doadores,
sem um certificado de atribuição de autoria, confiando apenas na experiência e no ‘olho’ de Bardi. Anos mais tarde, foram encontrados no acervo do Ashmolean Museum, em Oxford, dois desenhos preparatórios para pintura
do MASP, assinados por Rafael, sacramentando a atribuição sugerida por Bardi.
O quadro São Sebastião na Colunafoi exposto na Burlington House de Londres, em 1871, com atribuição a Rafael. A atribuição a Perugino deve-se a Rober to Longhi, que conhecia a obra ainda quando estava em Wigan, perto de Liverpool, e para quem “se
trata de uma variante autógrafa de Perugino da conhecida pintura do Louvre” (carta a P. M. Bardi, de 20 de junho de 1947). As fontes literárias mais importantes da lenda de São Sebastião são a Acta Sancti Sebastiani
Mar tyris, já atribuídas a Ambrósio, compostas aproximadamente 150 anos após o suplício do santo, e a Legenda Aurea do dominicano Jacopo da Voragine, da segunda metade do século XIII. Segundo a narrativa, de
cavaleiro na corte de Narbonne, Sebastião tornou-se capitão da Primeira Corte Pretoriana, conselheiro secreto do imperador Diocleciano e em seguida do diarca Maxi mi liano Hércules. Descobertas suas
atividades em prol da difusão do cristianismo, seu martírio, segundo Ricci (1924, p. 5), adquire o caráter de uma punição solene inigida a um traidor da causa da religião dos ancestrais. Por ordem de Diocleciano, em
303, Sebastião foi amarrado nu a uma árvore e entregue a arqueiros da Mauritânia, que o crivaram de fechas e xaram sobre sua cabeça a inscrição Sebastianus christianus. Sempre segundo a mesma tradição, uma certa
Irene teria
cuidado de tal maneira de seus ferimentos que o santo terminaria por se curar. O tema de São Sebastião cuidado por Irene, bastante comum no século xvii, comparece já na obra de Perugino, que o inclui no assim chamado
políptico de Santo Agostinho (1495), hoje disperso. A imagem do santo supliciado é antiqüíssima e sua primeira representação remonta a um baixo-relevo em terracota do período paleocristão, descoberto no cemitério de
Priscilla, hoje perdido, mas ilustrado por Ciampini para a Roma Sotterranea de Antonio Bosio (ed. 1632). Ao contrário da tradição iconográfica medieval, que o faz barbudo e o mantém vestido, às vezes mesmo com uma
armadura, sua representação como um jovem nu e imberbe, tal como se o vê na obra do Masp, começa a impor-se somente em meados do século xv, quando sua imagem tende a associar-se à de um Apolo ou Adônis cristão, não
isenta de resto de ressonâncias homossexuais. Sua nudez fornece então uma oportunidade singular para a emulação com a plástica antiga, em que se comprazem artistas como Antonello da Messina, Foppa, Crivelli, Tura,
Mantegna, Bellini, Pollaiolo e Perugino, muitos dos quais retornam ao tema diversas vezes. Seja por tais associações com a escultura clássica, seja pela simbólica de que se revestem seu sacrifício e o contexto
arquitetônico alusivo à Antiguidade em que normalmente costuma-se situá-lo, São Sebastião, como foi bem assinalado por Berbara (1996), presta-se por excelência à representação iconográca do tema da agonística entre
cultura pagã e cristianismo, caro ao Quatrocentos.
Distinguem-se na obra de Perugino três precedentes à tela do Masp. O primeiro é uma Sacra Conversação com o santo gurado em idêntica maneira, conservada nos Uzi, em Florença, e com data de 1493. Vasari informa que o
retábulo destinava-se à igreja de San Domenico em Fiesole, e sublinha que, entre as personagens presentes na obra, o São Sebastião “é elogiadíssimo”, o que deve explicar por que o pintor retornará outras vezes à
mesma solução compositiva, como no torso do santo, possivelmente um fragmento, conservado no Ermitage em São Petersburgo e sobretudo no São Sebastião do Louvre, do qual o nosso é uma réplica em um formato algo maior.
Desses três precedentes, o desenho preparatório conservado no Museu de Cleveland fornece um mesmo ponto de partida, de que deriva também o belo afresco do Martírio do Santo na igreja de São Sebastião em Panicale,
perto de Perúgia
(1505). Pode-se presumir de resto que Perugino tenha voltado várias vezes às mesmas soluções formais em outras gurações de São Sebastião, e que tal abundância de representações do santo se devesse às suas funções
apotropaicas em relação às epidemias. O quadro outrora de propriedade do príncipe Sciarra Colonna de Roma, hoje no Louvre, é retomado pelo nosso, como acredita Longhi, com intervenções de ateliê “nas partes
arquitetônicas (que não apresentam alguns detalhes presentes na obra parisiense e são mais pesadas nos ornamentos sobre as duas pilastras)”. Camesasca (1959, 1969) reitera a hipótese de Longhi e inventaria em 1988 as
variantes vericáveis na obra do Masp em relação à do Louvre, como ausência da inscrição Sagittae tuae inxe [sic] sunt mihi”, as aludidas simplicações na arquitetura e na paisagem ao fundo etc. Mas, sobretudo,
reformula a hipótese de Longhi em termos mais
nuançados: “après avoir vu l’oeuvre ‘de visu’ (1970), je me rendis compte que, parmis les collaborateurs dans des ‘zones périphériques” (architectures etc.), fait habituel aussi chez les maîtres moins chargés de
travail que Pérugin, il était possible d’en déceler une qui méritait la plus haute considération, à savoir celle de Raphaël; et ceci, plus particulièrement, dans la facture des jambes, par exemple, si admirablement
compacte, tout en étant délicate et précise”. “Aujourd’hui je me borne tout simplement à exprimer le doute, car une connaissance plus approfondie de Pérugin m’a appris à placer son ra nement manuel aux niveaux
honorables de la peinture européenne de tous les temps.” Além disso, para Longhi, “uma
consideração cronológica pode ser inferida da diferença expressiva e técnica entre as duas obras. A pintura de Paris é de conduta estritamente quatrocentista e datada de fato, pela melhor crítica, em torno de 1494;
na nova obra (no Masp), entretanto, a fusão das passagens no nu e na paisagem ao fundo têm uma maturidade nova, de gosto quinhentista. Isto pode explicar, até certo ponto, também o porquê da atribuição excessivamente
ambiciosa a Rafael que acompanha a obra durante o século xix; tanto que sob este nome foi exposta em Burlington House, em 1871. Mas um constante crescimento em sentido quinhentista é comum nas obras de Perugino a
partir dos afrescos del Cambio; e há portanto de se concluir que ele próprio, dez ou quinze anos após, tenha replicado a sua antiga e famosa invenção, adaptando-a às novas tendências. É plausível por isso datar seu
quadro de 1505-1510”. Também para Camesasca, a obra do Masp é claramente posterior à do Louvre, pois enquanto esta deve ser coeva ao retábulo dos Uzi, i.e., de c. 1493, a versão do Masp, São Sebastião na Coluna, deve
ser de sete anos aproximadamente mais tardia, i.e. de c. 1500. Uma cópia antiga desta mesma composição, já atribuída ao próprio artista, encontra-se na Galleria Borghese, em Roma (Camesasca 1969, n. 270).